Aquele nosso amor
ardia no fogo vivo
de uma fome cega
que nos consumia
num abraço lânguido
entre inferno e céu.
Foi o nosso amor
tão de corpo inteiro
que nos consumiu...
Arakné
Entre os deuses que habitavam no Olimpo reinava Atena, deusa da Sabedoria e de todas as Artes... A bela Arakné era uma extraordinária bordadeira, cujos trabalhos maravilhosos eram admirados por todos os que os contemplavam:
- Que mãos preciosas tem!... que harmonia de cores!... que obras de arte!...
Tais elogios envaideceram tanto Arakné, que um dia exclamou:
- Se eu desafiasse a deusa Atena tenho a certeza de que ganharia!
Logo as ninfas do bosque correram a contar as suas palavras à deusa que, enfurecida pela afronta, logo aceitou o desafio... No dia marcado, Atena executou o seu bordado com muita arte e empenho mas, quando terminou, percebeu que a obra de Arakné era realmente muito mais bela que a sua... Enraivecida, rasgou o bordado da sua rival em mil pedaços e, em seguida, transformou-a numa aranha para todo o sempre...
(Lenda Mitológica Grega)
*DIVAGAR
Na varanda em frente ao mar,
entre eu e a fantasia,
visionária viajante
nas páginas de um livro aberto,
divago pelo poente
e o meu olhar desgarrado
passeia em traços largos
na margem deste poema.
Sorvo brilho em taça cheia
de um licor inebriante,
colorido de rubi,
com gosto de terra nunca
e um leve aroma a jasmim.
Nesta busca em desatino
que transporto desde imemórias,
nas lágrimas que desde menina
corriam por dentro de mim
e se sumiam num rio,
que transbordava em marés,
muito além do sol nascente,
como oceano perdido
em luas e águas revoltas,
o grito agudo de gaivotas
voando em voo picado,
entre o sonho e o ocaso
e um reflexo brilhante.
Os sentidos entorpecidos
vagueiam neste dilema:
ora a página que me convoca
numa promessa de ausência,
ora a fuga no horizonte
que me afoga em nostalgia
e esquecimento de mim.
Pela porta entreaberta
ou janela escancarada,
entre o livro e a fantasia,
caminho por um deserto
rumo a um destino incerto
com vista para o infinito,
nas ondas do mar revolto
sol ardente e esquecimento.
Arakné
*REVERSO INVERSO
Perduram em mim sensações leves e ténues memórias,
invisíveis, vibráteis, translúcidas como marcas de água,
em esbatidas tonalidades, calidamente irisadas e indefinidas,
envoltas em longas melancolias ou curtas risadas
divertidas ou sarcásticas, estranhas fantasias
que temperam momentos fugazes que me surpreendem e retêm.
Sustentada no impercetível suspiro da nostalgia
onde se diluem restos de nadas, algo do que sobra das dores
e, quase incógnitos, vestígios do que fui, do que pensei ser,
do que sonhei que seria, do que nunca fui.
Amiúde, disperso-me em estranhas conjeturas
nas quais me busco, desesperada, tentando encontrar
um rasto do que fui e desconheço, porque não nasceu,
não viveu, apenas morreu.
Do Passado, chegam-me desmaiados ruídos,
murmúrios em que adivinho frases ou reconheço vozes.
Sinto espinhos enterrados, dores mascaradas só assinaladas
por gotículas minúsculas de sangue vivo.
E as súplicas que larguei pelo caminho, num rasto desfeito
pela caminhada, por vias que construí e logo desconstruí.
Busco os sonhos em que almejava voos e caía,
num desânimo de asas frágeis, demasiado pequenas
perante o império das razões.
Viajei ventos, nuvens e marés, no choro de mágoa oculta,
na secreta culpa, no perdão desmaiado.
Pelas margens do abismo que me convocava
ou pelas planícies onde me perdia dos horizontes,
seguia rotas escolhidas ao acaso, que me conduziam
aos acasos desconexos, onde procurava sentidos.
Exausta, sentava-me nas pedras soltas do caminho
e observava os sulcos deixados pelos meus passos
e o quanto me perdia sem perceber o descaminho...
Transpus mágoas que escorreram para o fundo
deste abismo que sou, gravando marcas invisíveis
no meu olhar que já não derramava lágrimas.
Experimentei o grito, a voz, a súplica exaltada,
mais adivinhada do que escutada, rolando num eco
longo, distante, tímido.
Perco-me ainda neste poço tão profundo que reflete o céu
e acolhe o grito desgarrado, a ilusão do choro, a queixa
inexplicável, a graça inexistente, a deixa jamais cumprida.
No sonho diletante de um sono intranquilo,
no mistério absurdo de um horizonte apagado,
nas profundezas por onde o que fui se consumiu,
no mar alteroso em que um barco se afundou
sem rota, sem rumo, sem luta...
Reconheço-me, por fim, no rumo, na rota, na luta,
nos traços visíveis deste céu invertido que sou eu.
Arakné
*A IMPROBABILIDADE DE EU SER EU...
Para além do caos dos azuis diversos
e convulsos, por entre cinzas e contornos negros,
contrastam dispersas manchas coloridas,
alguns flocos brancos e muitos acasos...
Sorvo, com avidez, uma ébria sensação vital,
surdamente consciente da minha eternidade,
feita tão perfeita nas suas múltiplas
e efémeras imperfeições...
Como a maresia das ondas vivas morre na praia,
leve e solta se balança numa infinidade oceânica
a imensidão estática do Todo precipitado
em fúrias desmaiadas, buscando a paz
das areias molhadas...
Mergulho também nessa paz, em laços de amor
e poder, aquietando o olhar no instante exacto
das marés vivas e dos céus de tempestades,
por onde gaivotas gritam destinos longos,
esvoaçando terras longínquas,
onde Tudo acaba em Nunca
e um Agora perene se revela...
Num destino, inevitavelmente difuso,
algum dia serei semente no bico de uma gaivota
ou, quem sabe, alga marinha cidadã do mundo,
viajante transportada por correntes
em cascos de navios, ancorada em aventuras,
imensidões e milénios...
Perpetua-me a herança dispersa
que carrego, por entre a seiva de árvores
em ilhas remotas ou como pequenos musgos
recolhidos na âncora de um barco naufragado...
A eternidade permanece,
para lá do ser ilimitado que sempre serei,
em cada partícula levada por ventos,
navegada por marés, replicada ao acaso,
aquele mesmo que, por acaso, não existe,
porque tudo se aperfeiçoa e se aprimora...
A Sabedoria oculta-se ao Olhar
mas subjaz à Existência, observante observada,
terra longe fértil, como ilusão de óptica ou, talvez,
mera quimera... Não sou daqui, nem fui dali,
serei talvez um infinitesimal grão
de energia quântica, uma inexistência real...
Aglomero-me à sorte aqui e logo me dissiparei ali...
Num incidente ancestral me revivi
nas incontáveis células em que me perfaço,
para além dos gâmetas que me enfocaram
no Eu que agora sou, mera sequência e junção...
Desde quando me gerei
e em quantos me agregarei?
Infinitamente para além de mil sóis,
que algum dia explodirão em luz
e fragor intenso, implosão estelar
que me cristalizará em partículas
de luz e átomos...
Dispersas por que vácuos?
E assim me quedarei, quietamente,
por infinitudes, até que me desperte
um astro vagueante e me transporte
a uma nova dimensão, partícula viajante,
divina nas eternidades possíveis...
Potência essencial e pura, porque o tempo
é uma ilusão que limita o ilimitado
e preenche de nadas os espaços vazios.
E eu, por aí, desfeita, vagueando improbabilidades...
Arakné
Arakné
*LUNAR
Filtrava-se na noite tão mágica
o deslumbramento intenso do mergulho
profundo no fascínio da pérola celeste
perfeita, intocável, intocada, diáfana
em matizes de luz serena, luzeiro, guia,
sortilégio dos deuses, antiga magia,
ancestrais mistérios, inflexos, reflexos,
inquietudes, inexplicáveis feitiços...
E na noite solitária quantos contrastes
se derramavam pelas sombras salgadas
em marés de lágrimas pesadas e lentas,
numa recordação doce, onírica e lunar...
Desnudava-se a noite num arrepio
de arvoredos, por onde escorriam
lampejos, em jogos de eternas sombras
envoltas numa luz em desmaios...
Os sabores de brisa no calor dos beijos,
sedentos de entregas, recortavam-se
no desejo antigo.
A fome do olhar escorria em carícias cruas.
O céu abraçava os sonhos numa irrealidade
de velhos mistérios.
Os destinos cruzavam rastos de estrelas
em rotas cadentes por mundos
que riscavam longes.
Rompiam-se em rasgos as almas amantes,
declinavam nostalgias, luzes, fugas e vazios.
As estelares dimensões dos mundos
paralelos desdobravam-se em oceanos
infinitos de estrelas, em lunares fantasias
e poemas delirantes.
Arakné
Espaços de outrora,
reconstituídos na memória,
de amores vividos em embriaguez
e paixão, ora mergulhada em agonias
de ausências, ora imersa em volúpias
de presenças.
Recolhia suplicante o suspiro
adivinhado num olhar faminto
e o sabor do beijo que me avassalava,
intenso, num mar escaldante
de invasões cegas e corpos sábios.
Renascida.
Amores tão inteiros porque
em pedaços tudo se apoucava.
Estirava ao sol a fantasia das asas
que chegavam e partiam, em buscas
desmedidas, sem termo, sem término,
sem moderação.
Desatava os nós de fios esgarçados,
esfarrapava rendas, veludos gastos,
as porcelanas, ociosas, desesperadas
pelo banquete e o vidro fino da taça cheia
que me brindava um licor forte,
quebrados em mil pedaços
perante um olhar desatento.
Desentendidas as entregas
e desesperados os retornos,
a amargura ilusória de amar só por amor,
o derramar de vazios sem plenitudes.
Entristecida.
Sobrevoei lonjuras, sem tino,
sem rumo, na procura que me apontava
ao caminho imaginado, na ambição
de alcançar o azul do céu infindo,
por onde asas livres viajavam vontades
de infinito, perdida entre ser tudo,
mas não existir ou nada ser,
mas renascer.
Parti, surda ao clamor, intocada
pela súplica, já submersa na incerteza
do mergulho, em fuga da palavra
desmerecida, do gesto suspenso,
da pergunta calada, da indiferença.
A boca seca, o frio gélido da mão,
o olhar sombrio, a pena funda,
o lamento chorado que nunca chegou.
Ninguém soube, ninguém viu,
ninguém escutou?
Mas a ave chorou, tão doída,
as asas amachucadas.
Voei incrédula, tonta de liberdade,
já improvável, já indiferente, ainda receosa
do recomeço, curiosa da promessa,
em devaneios de sal e lágrimas,
num desamor desconstruído,
num amor desamado, ainda amando.
Vivi o sobressalto, renasci na surpresa
do ânimo enrouquecido.
Como sempre! Como nunca!
Em cada passo diluí as marés salgadas
que me submergiam.
Cheguei e parti, sempre vestida
de descobertas inadiáveis.
Ave em voo livre, que se prendia
em gaiolas, sonhando horizontes vastos.
Liberta, voei solta, para além
das madrugadas cinzentas e desenhei
uma luz dourada nas alvoradas.
Arakné